quinta-feira, 9 de abril de 2009

Colagens

Num desses dias ouvi de alguém que as qualificações morais que atribuímos a vida são somente isso mesmo: um valor que nós depositamos sobre algo, o que seria muito diferente do que as coisas realmente são. Aliás, meu interlocutor foi ainda além, ele disse que não sabemos na verdade como as coisas são, que vivemos aturdidos por esses conceitos que vamos distribuindo sobre tudo e todos, num gesto algo messiânico como aqueles imperadores da antiguidade que, com uma impostação de dedos, um meneio de cabeça, vaticinavam o destino do que se apresentava. A diferença é que nossas deliberações não seriam capitais, mas uma tentativa de acomodar sobre a realidade nossa estreita percepção da vida.

Tenho bons amigos que já aprendi a não retrucar, especialmente quando não concordo muito com o que ouço. Essa foi uma daquelas oportunidades em que ouvi calado porque não tinha certeza de ter entendido muito bem o que isso tudo poderia significar. Então numa de minhas caminhadas matinais (são sempre inspiradoras) lembrei do Firmin. Firmin é um rato, personagem do livro que leva seu nome ( Firmin, de Sam Savage - Ed. Planeta - 244 pg.) e que, nascido no porão de uma livraria, devorava seus livros. Primeiro literalmente, depois metaforicamente. Assim passou a observar o mundo com um olhar misto de homem e rato, mas sem conhecer muito dos valores morais dos homens. No mínimo pode-se dizer que Firmin consegue relativizar muito nossa percepção automática das coisas. As observações que faz dos lugares que habita, das pessoas que encontra, das situações que vive são essencialmente contemplativas, quase sem julgamento.

Como por exemplo quando relata o cinema pornô aonde vai para procurar comida. A simples descrição “pornô” já remete a qualquer um de nós um rosário de conceitos, mas para Firmin: “ Embora o Rialto oferecesse bastante coisa, o público era escasso e tornava-se fácil, para mim, caminhar entre as poltronas vazias e, com minha refinada capacidade de discernimento, colher restos de bala e pipoca e até mesmo, às vezes, um pedaço de cachorro quente ou presunto defumado (os notívagos geralmente traziam lanche para comer ali), enquanto o facho de luz funcionava como uma lanterna em minha busca.”

Dificilmente alguém de nós faria tal descrição desse tipo de cinema, somos aculturados demais para procurar uma segunda resposta. A primeira que encontramos é imediatamente colada ao que vemos e dali geralmente não se desprende senão mediante uma irremediável frustração dessa visão de mundo.

Ah, você deve estar pensando que, enfim, essa foi a visão de um rato! Qual o sentido de expandir a nossa percepção àquela que supostamente teria um rato? Essa pergunta já trás engajados alguns valores, como por exemplo: de nada vale a visão que um rato teria das coisas. Proponho seguirmos adiante então.

Há um outro trecho em que Firmin é levado a um parque pelo dono da casa que ele habita e então faz a descrição do que vê: “ Somente uma vez eu havia visto o mundo humano à luz do dia, em pleno sol, os edifícios altos e as árvores frondosas e as flores de variadas cores e as pessoas caminhando, e daquela vez chegara quase a congelar de tanto medo. Agora, viajando no carrinho de Jerry, não sentia medo algum e podia olhar as pessoas de frente e as árvores e sentir aquilo que eu acho que é o que eles chamam de alegria. Imaginei “um mundo maravilhoso” e deixei-o flutuar no céu azul, balançando ao vento, como uma faixa. Claro que havia também um gostinho amargo de bílis na boca- afinal, aquele não era meu mundo-, mas logo o engoli. As pessoas olhavam para nós, principalmente para mim, e eu retribuia com meus olhos negros, sem pestanejar.”

Não sei quanto à você, mas para mim, ao ler esse trecho tenho muito mais facilidade de reconhecer a visão que Firmin teve daquele momento em comparação à descrição que fez do cinema. Paira no ar uma sensação de plenitude e simbolicamente é algo fácil de assimilar e de se apropriar. No entanto é uma descrição tão autêntica quanto a anterior, relata com a mesma originalidade a vida que se apresenta e, arrisco-me a dizer, descreve coisas singelas da vida que nem sempre conseguimos ver, aturdidos que estamos.

Obrigado meus amigos, pelas provocações que me fazem e por não serem um eco das minhas frequentes visões obtusas do mundo.

Girando, girando

Ainda tentando compensar o atraso, embora eu saiba que tempo ido não se compensa, publico uma poesia de minha amiga Joana. A Joana é uma daquelas pessoas com o rosto iluminado, de sorriso generoso. Assim é sua poesia.

Quando se vive intensamente, o passo para o exagero é muito curto.

Quando estou girando, não é diferente...
Voo até os pés quererem fugir, aí... bato!
Percebo que fui além e retorno, sem constrangimento, e, continuo me entregando, porém, com os pés no chão.

Aspiro que seja assim na vida: que as batidas nas mãos alheias não inibam a minha alma, mas apenas sinalizem que eu preciso suavizar o passo. Sem mágoas, medos e ressentimentos.

Quero viver livremente, sem julgamentos e barreiras!

Quero também, amar livremente...
E, quando perder os pés do chão, aprender a apenas suavizar, sem deixar de me entregar,
Continuar fluindo...

Eu amo girar, porque aceito a mim mesma, porque entrego a minha alma, encontro o meu coração... e me liberto.


Leia mais da Joana aqui.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Voltando...devagarinho


Estive sem escrever por um bom tempo. Fruto dos ajustes em minha nova rotina, nova cidade.
Esta postagem é, ainda que bem tardia, uma despedida de Ivoti, onde morei por bastante tempo e realizei coisas importantes na minha vida. A antiga foto que abria o blog e que vai nesta postagem é a vista que tinha à noite da minha sacada.
Nova vida, nova cidade, outros desafios, outras imagens. A foto que agora abre o blog é do Parque da Redenção, um dos pontos que mais aprecio na cidade.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Bom ou mau por natureza?

Pronto, finalmente assisti ao Ensaio Sobre a Cegueira, dirigido pelo Fernando Meireles. Mesmo sabendo que provavelmente vou entrar em conflito com alguns bons amigos sobre as impressões do filme, decidi escrever a respeito. Tenho o hábito de olhar as entrelinhas do que está sendo dito e, correndo todos os riscos de falhar miseravelmente nessa análise e desapontar aqueles que incensam o filme, vou avisando que o que segue é minha visão subjetiva das intenções do filme.

Primeiro o que me parece bom, mas pouco e um tanto óbvio. Logo no princípio do filme há a intenção de denunciar a dependência do homem ao sentido da visão. Há um mérito inegável aí. A visão é o nosso sentido mais usado, há uma prevalência dele sobre os demais. Todas as cenas que mostram o homem perdido no trânsito são quase didáticas. O Homem sem visão está perdido, não consegue responder por si, é completamente dependente da boa vontade de estranhos, e, acho que nesse ponto a história pretende ser irônica, pois é um ladrão que leva a primeira vítima da epidemia de cegueira para casa. O perfil dessa vítima já começa a dar o tom do filme. Ela mora num belo apartamento; sua esposa , as vezes um tanto exaltada, veste-se muito bem, quando chegam ao consultório do médico conseguem ser atendidos antes daqueles que já estavam lá, e, entre estes, a fala de um paciente negro apela para o script do bom samaritano. Tudo parece apontar o dedo para algum extrato social privilegiado, egoísta e sem escrúpulos. Não iluminados, sem visão. Tão óbvio, tão clichê!

Percebo já estou entrando naquilo que não gostei do filme, e que se sobrepõe muito ao que gostei. Vejo várias mensagens subliminares querendo imputar ao Homem aquela cantinela de que ele é mau por natureza, que necessita de iluminação, de regulação externa. Vamos a elas. A história mostra um Homem sem visão que contamina todos aqueles com quem convive e estes por sua vez vão expandido o mal. Ninguém é poupado, o médico burgues , a prostituta de luxo, o humilde caixa negro da farmácia, o ladrão de carros, a ministra da saúde, e por fim o mundo inteiro. Logo todos são iguais, todos são reduzidos à sua cegueira, ao seu mal, todos são nivelados pelo seu lado sombrio, aquele não iluminado, pelo Homem mau por natureza.

Ah, e há também a mão forte de um estado opressor que aprisiona todos os Homens por não saber como lidar com esses seres doentes. O Homem logo passa a ser tratado como lixo humano, vítima de políticas ineficazes e à mercê dos burocratas e detentores da força. Nessas condições aflorariam ainda mais os seus instintos animais, primários, em que vale a lei do mais forte. Logo, o mais forte, o detentor do poder de fogo subjuga os valores e a dignidade de todos os demais. É absolutista, decide quem come, abusa das mulheres e solapa a dignidade do Homem. Tudo em benefício próprio e de seu séquito. O filme parece querer dizer: vejam no que as políticas de estado, as condições precárias de vida transformaram a sociedade: só degradação moral. Sinto agora um gosto de ranço velho!!

A única esperança do Homem é o lider visionário, aquele ser desapegado que resolveu correr os riscos e entrar no inferno humano quando isso lhe era absolutamente desnecessário; mais, era extremamente perigoso. Ah, mas esse líder visionário é único não afetado pelo mal humano, ele tem a visão, percebe tudo aquilo que os demais não conseguem mais ver, é único capaz de conduzir o Homem pelos tortuosos caminhos em que foi metido, por si próprio e pelo sistema. Nesse ambiente, matar outro homem, especialmente o bárbaro usurpador das mulheres e dos direitos da coletividade é plenamente justificado, afinal somente ele é o iluminado que a tudo vê, quase um deus onisciente. Ele é o único que poderá reagir para restituir a dignidade do Homem. Trata-se de um ser tão elevado que só superficialmente é afetado pelos sentimentos. Interpretado por uma mulher, quando ela descobre seu parceiro satisfazendo suas carências sexuais com a prostituta reage de forma altiva, para entender o que aconteceu acha melhor não falar a respeito. Sua única reação mais contundente é informar à prostituta que possui o dom da visão. O corolário disso parece ser que, sendo uma pessoa iluminada e, portanto, moralmente melhor aparelhada não é afetada pelos sentimentos de raiva e ciúmes e nem tem ao que perdoar. Patético!

Lá pelas tantas vê-se um mundo tranformado num caos errante por causa da cegueira do Homem, não há mais nenhuma atividade econômica, não há energia, a fome grassa pelas cidades, ninguém sabe para onde ir ou como viver. O líder visionário é o único que consegue achar alimento, levar seus pupilos a um lugar seguro. Nesse recôndito lugar confraterniza com seus pares, proporciona-lhes abrigo, alegria, vida, e quando está chamando a todos para planejar, sempre centralizadamente, os próximos movimentos dá-se o grande milagre: a primeira vítima da cegueira consegue inexplicávelmente ver novamente, alcançou a iluminação e, de quebra, traz esperança aos demais de que também eles serão curados. Um narrador então diz: "Eles veriam novamente. Desta vez iriam realmente ver. Quem seria inseguro a ponto de se prender ao cobertor da cegueira? Quem seria tolo a temer que sua intimidade fosse se perder?"

Estaria eu escrevendo tudo isso para negar que existam esses problemas que são denunciados no filme? Não, esses problemas existem de fato e são graves. Há pessoas violentas, políticas estúpidas e ineficazes, falta de empatia, falta de reconhecimento daqueles que nos cercam, injustiças e tudo o mais que idealmente não gostaríamos que existisse. Mas isso não é tudo e estou escrevendo esse texto porque não concordo com essa rasteirização do Homem, nivelando-o pelo seu lado obscuro e, especialmente, porque acho muito perigoso que se acredite num líder centralizador, onisciente, libertador das chagas humanas e salvador dos descaminhos morais. Veja a coleção de leis, estatutos, deliberações morais que crescem exponencialmente nos dias de hoje. Uma das recentes leis, que por sinal não está sendo cumprida e nem fiscalizada é a famosa tolerância zero ao consumo de álcool. Ouvi várias defesas da legislação anterior, dizendo que seria suficiente se fosse cumprida. Nunca vi o empenho das autoridades em educar o Homem para sua auto-regulação. Parece que a coerção legal ou moral é a única forma de convivência que nos resta, ninguém parece acreditar que o Homem é capaz de apreender seus semelhantes, de viver sua humanidade. Também não acho que estejamos prontos para um mundo sem regras, mas me parece claro que a sobreposição, o excesso e até a contrariedade das regras atuais não estão produzindo um mundo e Homem melhor.

Estarei vendo coisas demais nas entrelinhas do filme? Essa tal mensagem subliminar é delírio meu? Talvez sim. O que você acha? Acha que o filme é muito mais inocente do que minha interpretação? Se sua resposta for sim, é provável que concorde que o Homem é mau por natureza e precisa ser controlado, regulado e conduzido. Senão, talvez acredite, como eu, que o homem é bom por natureza e que pode ser educado desde sua infância a se auto-regular para conviver com os limites que a vida impõe e com seus próprios exageros e vontades que invadem os demais. Estão aí postos os limites de minha visão do mundo.

A propósito, não li o livro do Saramago que inspirou o filme e portanto não posso tecer comentários sobre as intenções do que ele escreveu. Também não pretendo lê-lo. Há algum tempo comecei a ler o seu "A Caverna". Não gostei de seu estilo e, respeitando a finitude da vida e a necessidade de escolhas, decidi que esse não é um dos autores ao qual pretendo dedicar meu tempo.

Em tempo, como assisti ao filme em DVD tive a oportunidade de ver nos Bônus um trailer sobre o grupo brasileiro Uakti que fez a trilha sonora. Precioso.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Despedidas

Não é a primeira vez que me sinto assim. Aquele que por muito tempo foi o lugar em que morei agora está vazio, ou quase, restam poucas coisas. A sala por exemplo já tem somente o carpete no chão, um aparelho de som num canto, uma janela aberta e o vento entrando generoso. Estou sentado numa cadeira plástica de jardim e o computador no qual escrevo está sobre uma almofada no meu colo. No quarto, resta somente o colchão no chão, um abajur e, claro, alguns livros iniciados no chão. A salinha de trabalho é a mais entulhada, alí estão minhas roupas, livros e as pequenas coisas que me acompanharão daqui para frente.

Não obstante o vazio do apartamento, sinto-o preenchido. Agora, novamente, eu estou aqui e já consigo desfrutar do conforto da solidão. Já passei por vários tipos de solidão. Não vou falar daqueles tipos miseráveis, esses todos conhecem. O que desfruto hoje é um sentimento de suficiência. Estar só é o suficiente, permite-me estar comigo mesmo, dispensa todas as coisas, objetos, muletas, fugas, ou qualquer que seja o nome que se queira dar. Essa solidão não oprime e não deprime. Essa solidão permite escolhas, permite a consciência. Ela paira no ar, quase tangível. E é voluntária.

Não deixa de ser estranho que sinta isso somente agora que me desfiz de quase tudo que tinha, e que esteja num lugar ao qual em breve não tornarei. É como se esse espaço vazio fosse condição para permitir sentir o bastante em mim. Começo a achar, contudo, que o espaço vazio que é imprescindível é o interior. Me parece que é ali que se acomoda a vida, com todas as suas nuances, é ali que se abriga tudo aquilo que a vida trás, tanto o que compreendo e aceito quanto aquilo com que luto. É nesse vazio que a vida realmente acontece.

Das outras vezes que senti algo parecido foi com maior brevidade. Não estou certo se tinha a mesma consciência dos movimentos, se tinha o mesmo desapego e se consegui desfrutar tanto assim da liberdade. Daí que percebo que chegar ao essencial é absurdamente simples e, por isso mesmo, demorado. Não fui ensinado a lidar com a simplicidade, não sei se alguém é. As oportunidades já haviam me surgido antes. Não tive a coragem e reconhecê-las. Estava ancorado em antigas escolas, linhagens e escolhas, algumas minhas, outras, de outros.

Este é um momento em que nada tem de ser feito. O mais irônico é que sei que esse próprio sentimento é fugaz, esse equilíbrio também se evanescerá de alguma forma. Não sou um espírito assim tão elevado que consiga perpetuar a consciência que agora tenho. Tê-la alcançado é uma conquista, cultivá-la será uma jornada.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Auto acalanto

Há dias em que nada parece fazer muito sentido, ou melhor, coisas demais parecem fazer sentido e então nunca sei muito bem como lidar com esse turbilhão. Nesses dias respirar é algo quase heróico! Sim, pois as emoções oprimem o peito e fecham a garganta; a mente cerra a mandíbula e retesa as costas. Nesse dias a busca por respostas pode fazer com que conceitos opostos, absolutamente irreconciliáveis, pareçam igualmente apropriados aos nossos anseios, a vida fica completamente em suspenso e nenhuma decisão parece ser viável de ser tomada. Ainda tá respirando bem? Ou já teve de dar aquela paradinha para dar um suspiro fundo porque tava ficando ansioso?

Cada um lida com essa cruz a seu modo. O meu é tentar voltar a respirar decentemente. Respirar é automático, e, nesses dias, respirar mal também o é. O que eu faço então é forçar a respiração num ritmo mais profundo e para isso leio em voz alta, melhor dizendo, declamo. Tente declamar sem respirar fundo! Impossível, não é?

A princípio comecei com qualquer texto (e, a propósito, descobri que essa técnica é especialmente boa para entender aqueles textos densos, difíceis de acompanhar numa primeira leitura). Depois fui descobrindo a beleza da poesia e me rendi a ela. Um de meu textos preferidos é a Canção de Mim Mesmo, de Walt Whitman. Veja um fragmento. Vamos lá! Leia em voz alta e cadenciada; delicie-se.

Eu celebro a mim mesmo , e canto a mim mesmo,
E o que eu pensar também vais pensar,
Pois cada átomo que pertence a mim igualmente pertence a ti.

Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio tranquilo observando um talo de relva de verão.

Minha língua, cada átomo do meu sangue, formado deste solo, deste ar,
Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo, e seus pais o mesmo,
Eu, agora com trinta e sete anos de idade em perfeito estado de saúde, começo,
Com a esperança de não parar até a morte.

Crenças ficam em suspenso,
Recolhendo-se por enquanto na suficiência de serem o que são, mas nunca esquecidas
Aceito pensar para o bem e para o mal, permito que se fale em qualquer ocasião,
A natureza sem entrave com sua energia original.


Esse texto fala a mim e à toda a humanidade. Não, não me atreverei a diminuí-lo com a pobre interpretação que eu alcançaria. Esse é um daqueles textos que deveriam ser proibidos de interpretar, são textos para ser vividos tão somente.

Ahh, e há também Dante Alighieri, com a Divina Comédia. Nesses dias estava lendo e relendo um trecho e chamou-me a atenção esta parte em que Beatriz explica a Virgílio ( e este, por sua vez, relata a Dante) a razão de seu destemor em sair do céu e ir ao inferno a seu encontro. Não tenha vergonha; declame! Leia várias vezes.

Mas dize-me, por que não te intimida
aqui desceres neste fundo centro,
do amplo lugar que a volta te convida?'

'Desde que queres saber tão adentro',
ela me respondeu, 'vou te dizer
por que não temo chegar aqui dentro:

Temer deve-se a coisa em que o poder
de nos causar o mal se manifesta,
as outras não, das quais não há temer.

Tal fui feita por Deus, sua mercê, que esta
vossa fatal miséria não me afeta,
nem chama deste incêndio me molesta.


Mas há dias em que prefiro os versos pagãos de William Blake. Não que Dante não possa ser lido de forma pagã, creio que isso depende essencialmente da história de vida e de crenças do leitor. Mas vamos adiante. Este é um poema do livro Cantigas da Inocência e da Experiência.

Noite

Descendo o sol no poente,
Cintila a estrela da tarde.
Calam-se as aves nos ninhos,
E eu em busca do meu,
Parece a lua uma flor,
No alto jardim do céu,
Que em silêncio se senta
E para a noite sorri.

Adeus campos, verdes matas,
Onde os rebanhos pastaram;
Pelos campos aprazíveis,
Vão os anjos invisíveis
Encher de graça bendita,
E de alegria infinita,
Cada flor, cada botão,
Cada coração que dorme.

Espreitam em cada ninho,
Onde durma um passarinho;
E vão a todos os nichos,
Sossegar todos os bichos;
Se acaso algum chora
E o sono lhe demora,
Sentam-se ali a seu lado,
Até ficar ensonado.


Muito bem, você que estava lendo esse texto num cyber-cafe e ficou aí declamando as poesias em alto e bom som, já deve estar se sentindo um tanto mais animado! Sentiu a assertividade da vida na potência e coragem da voz? Sentiu que o mundo fica relativo quando tens de acompanhar as rimas e modular o volume? Sentiu o estômago se revolver quando o ar chega até os confins dos pulmões? E sua vizinhança? Talvez até tenha sido saudado pelo pessoal aí ao lado. Não; ninguém entendeu? A rapaziada nem te ouviu de tanto gritar e xingar as mortes sofridas nos games que estavam jogando? Não tem problema não. Eu penso sempre que a poesia é para consumo próprio. Talvez até enterneça quem ouve, mas acalanta mesmo é ao próprio coração que as declama, e suspeito, (não tenho sido acometido por certezas ultimamente) que o insufla do espírito e da sabedoria profunda desses poetas.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A fé na vida

Todos aqueles que já idealizaram um projeto, que já acalentaram um amor, que já sonharam uma conquista sabem o que é ter fé na vida. E não consigo imaginar quem não tenha passado por isso e então me autorizo a acreditar que escrevo para todos. Tudo o que é construído, desejado, imaginado tem em sua origem essa fé, e carrega também algo assemelhado, mas com uma diferença tão sutil que é quase sempre tomado como igual: a expectativa.

Já que me arrogo a dizer isso, devo agora ser claro em dizer as diferenças, as ditas sutilezas. Pois bem, aí vai meu entendimento da coisa toda, e já vou adiantando que não sei conceituar isso tudo, (ou talvez até soubesse, mas quero experimentar caminhos mais leves), sei apenas contextualizar o que quero dizer.

A fé na vida é o riso e a curiosidade da criança, é a ideia primeira, é a respiração livre, é a vontade que surge do nada, é espontânea, é o broto que nasce da semente da flor, mas também da erva-daninha (voltarei a ela mais tarde), é o beijo natural na face do meu irmão (de sangue ou não), é a voz da garganta aberta, é, para finalmente usar a palavra que queima na ponta da minha língua: instintiva.

E a expectativa, o que é? Bom, para ser bem rasteiro e superficial: é a erva-daninha. Sim, pois o conceito de que uma determinada erva é daninha vem da expectativa que ela frustra ao teimar em aparecer numa horta ou canteiro de flores que se queria "limpo". Calma lá, antes que você pense que vou entrar aqui numa cruzada pela vigilância da moral e de seus conceitos vou dizendo que essa nem de longe é minha intenção. Pessoalmente acho que todas as criaturas tem sua função mas esse não é o ponto do meu texto.

Minha comparação com a erva-daninha é para provocar o entendimento que temos sobre as expectativas. Enquanto a fé não é para ser adquirida, compreendida, buscada, na expectativa tudo isso acontece e é necessário. E esse é o ponto nevrálgico da questão toda. Essa fé de que falo não pode (ou não poderia - as religiões não concordam comigo) admitir a existência de um conceito moral sobre si, mas com a expectativa isso é inevitável. Ela pode ser otimista ou pessimista, e então constrói ou destrói, e tanto um quanto outro podem ser bons ou ruins. Percebo que estou montando uma sobreposição de conceitos que estão implícitos nessa última frase. Para planificar digamos que a expectativa é o resultado que esperamos, mas poucas são as vezes em que estamos conscientes de que esperamos algo e de como reagimos à sua consecução ou frustração.

Como dosar o apego que em alguns momentos é indispensável para construir algo e o necessário desapego para não aprisionar a alma depois? Como aceitar que aqueles olhares, as carícias e as promessas de vida a dois agora se transformaram em algo diferente do esperado e que talvez nem mais se consiga conviver? Ou, em tendo de conviver, como lidar com as diferenças e construir algo novo, saudável? Como gozar das conquistas sem temer ser engolido por elas ou perdê-las?

Ando prestando atenção à vida. Há dias em que minha energia abunda e inunda minha existência e meus atos. Saio pelo mundo com vigor e entusiasmo. Cantarolante, cheio de ótimas expectativas cumpro tudo a que me proponho destemido e crente de que a vida é maravilhosa. Há outros em que essas gloriosas expectativas são frustradas de alguma forma e então é necessário parar, desacelerar, rever a vida. Nesses dias o vigor e entusiasmo não são espontâneos, as canções cedem aos murmúrios e se o dia estiver especialmente bonito e ensolarado talvez me sinta ainda pior por não suportar minha miséria frente à beleza do mundo. E então me pergunto: como não ser refém de vontades tão volúveis de mim mesmo? E me recolho, procurando pela sabedoria que abandonei no auge da excitação.

E há, finalmente, alguns dias em que estou consciente. Nesses dias reconheço que preciso aprender a lidar com as expectativas sem ofuscar a fé. Que algo além de minha pouca compreensão da vida move o mundo e que deve ser possível viver sem tantas oscilações. Como fazê-lo? Não sei. Nesses dias é que escrevo. E é só até aqui que a minha rala consciência da vida me trouxe até agora.