quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Auto acalanto

Há dias em que nada parece fazer muito sentido, ou melhor, coisas demais parecem fazer sentido e então nunca sei muito bem como lidar com esse turbilhão. Nesses dias respirar é algo quase heróico! Sim, pois as emoções oprimem o peito e fecham a garganta; a mente cerra a mandíbula e retesa as costas. Nesse dias a busca por respostas pode fazer com que conceitos opostos, absolutamente irreconciliáveis, pareçam igualmente apropriados aos nossos anseios, a vida fica completamente em suspenso e nenhuma decisão parece ser viável de ser tomada. Ainda tá respirando bem? Ou já teve de dar aquela paradinha para dar um suspiro fundo porque tava ficando ansioso?

Cada um lida com essa cruz a seu modo. O meu é tentar voltar a respirar decentemente. Respirar é automático, e, nesses dias, respirar mal também o é. O que eu faço então é forçar a respiração num ritmo mais profundo e para isso leio em voz alta, melhor dizendo, declamo. Tente declamar sem respirar fundo! Impossível, não é?

A princípio comecei com qualquer texto (e, a propósito, descobri que essa técnica é especialmente boa para entender aqueles textos densos, difíceis de acompanhar numa primeira leitura). Depois fui descobrindo a beleza da poesia e me rendi a ela. Um de meu textos preferidos é a Canção de Mim Mesmo, de Walt Whitman. Veja um fragmento. Vamos lá! Leia em voz alta e cadenciada; delicie-se.

Eu celebro a mim mesmo , e canto a mim mesmo,
E o que eu pensar também vais pensar,
Pois cada átomo que pertence a mim igualmente pertence a ti.

Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio tranquilo observando um talo de relva de verão.

Minha língua, cada átomo do meu sangue, formado deste solo, deste ar,
Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo, e seus pais o mesmo,
Eu, agora com trinta e sete anos de idade em perfeito estado de saúde, começo,
Com a esperança de não parar até a morte.

Crenças ficam em suspenso,
Recolhendo-se por enquanto na suficiência de serem o que são, mas nunca esquecidas
Aceito pensar para o bem e para o mal, permito que se fale em qualquer ocasião,
A natureza sem entrave com sua energia original.


Esse texto fala a mim e à toda a humanidade. Não, não me atreverei a diminuí-lo com a pobre interpretação que eu alcançaria. Esse é um daqueles textos que deveriam ser proibidos de interpretar, são textos para ser vividos tão somente.

Ahh, e há também Dante Alighieri, com a Divina Comédia. Nesses dias estava lendo e relendo um trecho e chamou-me a atenção esta parte em que Beatriz explica a Virgílio ( e este, por sua vez, relata a Dante) a razão de seu destemor em sair do céu e ir ao inferno a seu encontro. Não tenha vergonha; declame! Leia várias vezes.

Mas dize-me, por que não te intimida
aqui desceres neste fundo centro,
do amplo lugar que a volta te convida?'

'Desde que queres saber tão adentro',
ela me respondeu, 'vou te dizer
por que não temo chegar aqui dentro:

Temer deve-se a coisa em que o poder
de nos causar o mal se manifesta,
as outras não, das quais não há temer.

Tal fui feita por Deus, sua mercê, que esta
vossa fatal miséria não me afeta,
nem chama deste incêndio me molesta.


Mas há dias em que prefiro os versos pagãos de William Blake. Não que Dante não possa ser lido de forma pagã, creio que isso depende essencialmente da história de vida e de crenças do leitor. Mas vamos adiante. Este é um poema do livro Cantigas da Inocência e da Experiência.

Noite

Descendo o sol no poente,
Cintila a estrela da tarde.
Calam-se as aves nos ninhos,
E eu em busca do meu,
Parece a lua uma flor,
No alto jardim do céu,
Que em silêncio se senta
E para a noite sorri.

Adeus campos, verdes matas,
Onde os rebanhos pastaram;
Pelos campos aprazíveis,
Vão os anjos invisíveis
Encher de graça bendita,
E de alegria infinita,
Cada flor, cada botão,
Cada coração que dorme.

Espreitam em cada ninho,
Onde durma um passarinho;
E vão a todos os nichos,
Sossegar todos os bichos;
Se acaso algum chora
E o sono lhe demora,
Sentam-se ali a seu lado,
Até ficar ensonado.


Muito bem, você que estava lendo esse texto num cyber-cafe e ficou aí declamando as poesias em alto e bom som, já deve estar se sentindo um tanto mais animado! Sentiu a assertividade da vida na potência e coragem da voz? Sentiu que o mundo fica relativo quando tens de acompanhar as rimas e modular o volume? Sentiu o estômago se revolver quando o ar chega até os confins dos pulmões? E sua vizinhança? Talvez até tenha sido saudado pelo pessoal aí ao lado. Não; ninguém entendeu? A rapaziada nem te ouviu de tanto gritar e xingar as mortes sofridas nos games que estavam jogando? Não tem problema não. Eu penso sempre que a poesia é para consumo próprio. Talvez até enterneça quem ouve, mas acalanta mesmo é ao próprio coração que as declama, e suspeito, (não tenho sido acometido por certezas ultimamente) que o insufla do espírito e da sabedoria profunda desses poetas.

2 comentários:

Anônimo disse...

eu costumo ter medo dos dias onde coisas demais fazem sentido...
belas poesias amigo!
mas ainda não tive coragem para ler em voz alta! :)

beiju

Anônimo disse...

Oi querido!

sem questionar ou querer entender o motivo de estar ali, mergulhei na boa energia de vocês e hoje, nestes dias em que está difícil de respirar e em que nada parece fazer muito sentido, lembro do poema e venho algumas vezes aqui, ler tuas escreveduras...

obrigada, continuas oxigenando meu cérebro e acalmando minha alma!