sábado, 14 de fevereiro de 2009

Bom ou mau por natureza?

Pronto, finalmente assisti ao Ensaio Sobre a Cegueira, dirigido pelo Fernando Meireles. Mesmo sabendo que provavelmente vou entrar em conflito com alguns bons amigos sobre as impressões do filme, decidi escrever a respeito. Tenho o hábito de olhar as entrelinhas do que está sendo dito e, correndo todos os riscos de falhar miseravelmente nessa análise e desapontar aqueles que incensam o filme, vou avisando que o que segue é minha visão subjetiva das intenções do filme.

Primeiro o que me parece bom, mas pouco e um tanto óbvio. Logo no princípio do filme há a intenção de denunciar a dependência do homem ao sentido da visão. Há um mérito inegável aí. A visão é o nosso sentido mais usado, há uma prevalência dele sobre os demais. Todas as cenas que mostram o homem perdido no trânsito são quase didáticas. O Homem sem visão está perdido, não consegue responder por si, é completamente dependente da boa vontade de estranhos, e, acho que nesse ponto a história pretende ser irônica, pois é um ladrão que leva a primeira vítima da epidemia de cegueira para casa. O perfil dessa vítima já começa a dar o tom do filme. Ela mora num belo apartamento; sua esposa , as vezes um tanto exaltada, veste-se muito bem, quando chegam ao consultório do médico conseguem ser atendidos antes daqueles que já estavam lá, e, entre estes, a fala de um paciente negro apela para o script do bom samaritano. Tudo parece apontar o dedo para algum extrato social privilegiado, egoísta e sem escrúpulos. Não iluminados, sem visão. Tão óbvio, tão clichê!

Percebo já estou entrando naquilo que não gostei do filme, e que se sobrepõe muito ao que gostei. Vejo várias mensagens subliminares querendo imputar ao Homem aquela cantinela de que ele é mau por natureza, que necessita de iluminação, de regulação externa. Vamos a elas. A história mostra um Homem sem visão que contamina todos aqueles com quem convive e estes por sua vez vão expandido o mal. Ninguém é poupado, o médico burgues , a prostituta de luxo, o humilde caixa negro da farmácia, o ladrão de carros, a ministra da saúde, e por fim o mundo inteiro. Logo todos são iguais, todos são reduzidos à sua cegueira, ao seu mal, todos são nivelados pelo seu lado sombrio, aquele não iluminado, pelo Homem mau por natureza.

Ah, e há também a mão forte de um estado opressor que aprisiona todos os Homens por não saber como lidar com esses seres doentes. O Homem logo passa a ser tratado como lixo humano, vítima de políticas ineficazes e à mercê dos burocratas e detentores da força. Nessas condições aflorariam ainda mais os seus instintos animais, primários, em que vale a lei do mais forte. Logo, o mais forte, o detentor do poder de fogo subjuga os valores e a dignidade de todos os demais. É absolutista, decide quem come, abusa das mulheres e solapa a dignidade do Homem. Tudo em benefício próprio e de seu séquito. O filme parece querer dizer: vejam no que as políticas de estado, as condições precárias de vida transformaram a sociedade: só degradação moral. Sinto agora um gosto de ranço velho!!

A única esperança do Homem é o lider visionário, aquele ser desapegado que resolveu correr os riscos e entrar no inferno humano quando isso lhe era absolutamente desnecessário; mais, era extremamente perigoso. Ah, mas esse líder visionário é único não afetado pelo mal humano, ele tem a visão, percebe tudo aquilo que os demais não conseguem mais ver, é único capaz de conduzir o Homem pelos tortuosos caminhos em que foi metido, por si próprio e pelo sistema. Nesse ambiente, matar outro homem, especialmente o bárbaro usurpador das mulheres e dos direitos da coletividade é plenamente justificado, afinal somente ele é o iluminado que a tudo vê, quase um deus onisciente. Ele é o único que poderá reagir para restituir a dignidade do Homem. Trata-se de um ser tão elevado que só superficialmente é afetado pelos sentimentos. Interpretado por uma mulher, quando ela descobre seu parceiro satisfazendo suas carências sexuais com a prostituta reage de forma altiva, para entender o que aconteceu acha melhor não falar a respeito. Sua única reação mais contundente é informar à prostituta que possui o dom da visão. O corolário disso parece ser que, sendo uma pessoa iluminada e, portanto, moralmente melhor aparelhada não é afetada pelos sentimentos de raiva e ciúmes e nem tem ao que perdoar. Patético!

Lá pelas tantas vê-se um mundo tranformado num caos errante por causa da cegueira do Homem, não há mais nenhuma atividade econômica, não há energia, a fome grassa pelas cidades, ninguém sabe para onde ir ou como viver. O líder visionário é o único que consegue achar alimento, levar seus pupilos a um lugar seguro. Nesse recôndito lugar confraterniza com seus pares, proporciona-lhes abrigo, alegria, vida, e quando está chamando a todos para planejar, sempre centralizadamente, os próximos movimentos dá-se o grande milagre: a primeira vítima da cegueira consegue inexplicávelmente ver novamente, alcançou a iluminação e, de quebra, traz esperança aos demais de que também eles serão curados. Um narrador então diz: "Eles veriam novamente. Desta vez iriam realmente ver. Quem seria inseguro a ponto de se prender ao cobertor da cegueira? Quem seria tolo a temer que sua intimidade fosse se perder?"

Estaria eu escrevendo tudo isso para negar que existam esses problemas que são denunciados no filme? Não, esses problemas existem de fato e são graves. Há pessoas violentas, políticas estúpidas e ineficazes, falta de empatia, falta de reconhecimento daqueles que nos cercam, injustiças e tudo o mais que idealmente não gostaríamos que existisse. Mas isso não é tudo e estou escrevendo esse texto porque não concordo com essa rasteirização do Homem, nivelando-o pelo seu lado obscuro e, especialmente, porque acho muito perigoso que se acredite num líder centralizador, onisciente, libertador das chagas humanas e salvador dos descaminhos morais. Veja a coleção de leis, estatutos, deliberações morais que crescem exponencialmente nos dias de hoje. Uma das recentes leis, que por sinal não está sendo cumprida e nem fiscalizada é a famosa tolerância zero ao consumo de álcool. Ouvi várias defesas da legislação anterior, dizendo que seria suficiente se fosse cumprida. Nunca vi o empenho das autoridades em educar o Homem para sua auto-regulação. Parece que a coerção legal ou moral é a única forma de convivência que nos resta, ninguém parece acreditar que o Homem é capaz de apreender seus semelhantes, de viver sua humanidade. Também não acho que estejamos prontos para um mundo sem regras, mas me parece claro que a sobreposição, o excesso e até a contrariedade das regras atuais não estão produzindo um mundo e Homem melhor.

Estarei vendo coisas demais nas entrelinhas do filme? Essa tal mensagem subliminar é delírio meu? Talvez sim. O que você acha? Acha que o filme é muito mais inocente do que minha interpretação? Se sua resposta for sim, é provável que concorde que o Homem é mau por natureza e precisa ser controlado, regulado e conduzido. Senão, talvez acredite, como eu, que o homem é bom por natureza e que pode ser educado desde sua infância a se auto-regular para conviver com os limites que a vida impõe e com seus próprios exageros e vontades que invadem os demais. Estão aí postos os limites de minha visão do mundo.

A propósito, não li o livro do Saramago que inspirou o filme e portanto não posso tecer comentários sobre as intenções do que ele escreveu. Também não pretendo lê-lo. Há algum tempo comecei a ler o seu "A Caverna". Não gostei de seu estilo e, respeitando a finitude da vida e a necessidade de escolhas, decidi que esse não é um dos autores ao qual pretendo dedicar meu tempo.

Em tempo, como assisti ao filme em DVD tive a oportunidade de ver nos Bônus um trailer sobre o grupo brasileiro Uakti que fez a trilha sonora. Precioso.

Nenhum comentário: